- Kant, o arquiteto da crítica;
A  vida de Immanuel Kant é uma das mais estranhas entre as estranhas vidas  de todos aqueles que se dedicaram à filosofia. Enquanto a maioria dos  filósofos modernos foi arrastada pela onda de transformação do  pensamento e dos costumes, sendo por conta disso que muitos deles foram  obrigados a viajar ou exilar-se em países diferentes de sua origem, Kant  permaneceu protegido desse frenesi, graças a uma rotina metódica que  espanta quem se interesse pela obra deste autor crucial para história da  filosofia. Como Rousseau e Hobbes, o início da vida de Kant foi marcada  pela pobreza e uma dura luta pela subsistência. Seu pai era um artesão  que produzia selas e artigos de couro. Sua mãe pertencia a uma seita  religiosa chamada Pietista que seguia com rigor absoluto todas práticas e  crenças religiosas. De sua infância e juventude pouco se sabe, além do  fato que o próprio Kant procurava esquecer os anos difíceis da  "escravidão juvenil". Os Kant haviam deixado a Escócia um século antes  do nascimento de Immanuel, procurando por uma situação mais confortável  na Prússia Oriental. O Kant mais famoso era o segundo entre seis irmãos e  nasceu, em 22 de abril de 1724, na cidade prussiana de Königsberg  (depois da invasão russa, em 1945, Kaliningrado). Cresceu, trabalhou,  estudou, pensou, escreveu e envelheceu sem nunca ter atravessado os  limites da cidade. Morreu tranquilo na senilidade, a 12 de fevereiro de  1804.
No colégio  Fridericianum, teve sua instrução básica iniciada em 1732, e na  Universidade de Königsberg formou-se em 1755. Durante o período de  formação, sobreviveu como professor particular de famílias ricas até  conseguir o grau de mestre. Aos 31 anos, começa a trabalhar nessa  universidade como conferencista particular (Privatdozent)  proferindo por mais 15 anos aulas sobre diversas matérias, desde  matemática e física até geografia e ética. Johann Gottfried von Herder  (1744-1803), que fora seu aluno, disse certa vez que "nada digno de ser  conhecido lhe era indiferente".  Depois de duas tentativas para ingressar no cargo de professor da  universidade, em 1770, finalmente, Kant consegue a nomeação de professor  de lógica e metafísica.
Seu cotidiano era regido  por uma regularidade mecânica e tudo tinha a hora certa para acontecer.  Pela manhã, acordava cedo e se punha a trabalhar, nada comendo até o  almoço. Durante o almoço, servido sempre na presença de três a oito  convidados, conversava animadamente sobre qualquer assunto de interesse,  menos sua própria filosofia. Às 15 horas e 30 minutos saía a passear  sozinho, a fim de respirar calmamente, pelo nariz, e exercitar-se ao  caminho. Tal era a precisão de seus hábitos, que uma anedota conta dos  habitantes da alameda de tílias, pela qual Kant sempre passava,  costumarem acertar seus relógios quando avistavam o filósofo se  aproximando. Por causa disso, essa rua passou a ser conhecida em  Königsberg, como o Passeio do Filósofo. Depois da caminhada, dirigia-se a  sua biblioteca e lia até anoitecer. Por volta das dez horas,  afastava-se de qualquer esforço mental, no intuito de preparar o sono.  Dessa rotina agradável da maturidade, Kant nunca se afastou, tendo a  quebrado apenas por duas vezes: primeiro quando leu o Emílio de  Rousseau e depois ao esperar notícias da Revolução Francesa.  
Kant tinha baixa estatura,  media cerca de um metro e sessenta de altura, em um corpo franzino, e  com estranhos era de uma timidez extrema. Por duas vezes, teve a  oportunidade de pedir a mão de duas moças, mas uma se mudou da cidade  antes que ele se decidisse lhe propor o casamento e a segunda, cansada  de esperar, aceitou o convite de outro rapaz mais ousado. Assim, Kant  deixou passar as chances de casamento, ficando solteiro por toda sua  longa vida.
Antes de Kant, a  filosofia oscilava como o pêndulo de Galileu, entre o materialismo e  empirismo de um lado e o inatismo e racionalismo de outro. Dogmáticos  idealistas e céticos naturalistas revezavam-se no posto de quem  proferiria a última palavra sobre o entendimento humano. Desde 1770,  Kant impôs-se como tarefa parar com essa troca constante de posições  propondo uma investigação sobre como a metafísica era possível de ser  entendida por ciência. Deveria então a crítica filosófica encontra um  objeto, ou a fonte de conhecimento, ou ainda o modo de pensar que fosse  peculiar à metafísica. Caso essa pesquisa apontasse resultados  negativos, as pretensões metafísicas de ser uma ciência própria deveriam  ser afastadas de vez.
A Critica da Razão  Pura, cuja primeira edição saiu em 1781, iniciou essa tarefa de  forma sistemática, procurando as características típicas da metafísica,  ou do conhecimento filosófico puro. Kant pensava que a física, a  matemática e a geometria de seu tempo já haviam encontrado formas de  conhecimento que satisfaziam seu estatuto científico, enquanto a  metafísica não era capaz de fornecer, sequer, um juízo sintético a  priori. Calma! Com isso Kant queria dizer que para uma atividade ser  considerada científica era preciso que ela apresentasse proposições, ou  enunciados, que fornecessem informações adicionais sobre o sujeito  estudado e, além disso, que transcendessem a qualquer experiência, isto  é, que fossem entendidas sem o recurso das relações das coisas  materiais. Tal juízo deveria estar puro de um contato empírico, como  instrumento da razão humana. A posse de um conhecimento puro seria  importante para qualquer ciência, uma vez que tal conhecimento  garantiria a sua necessidade.
A experiência ensina que  uma coisa pode ser constituída de uma maneira ou de outra, mas nada diz  se o que está sendo observado não possa ocorrer de forma diferente.  Essa lição Kant já havia aprendido com Hume. Tratava-se então de  encontrar um juízo necessário para toda metafísica poder ficar de pé.  Mas antes, é importante primeiro fazer algumas distinções e definições.  Assim sendo, Kant começa por definir a diferença entre juízos analíticos  e sintéticos. Por analíticos entendem-se os juízos cujos  predicados fazem parte da identidade do sujeito. Por exemplo, se o ouro  for definido como metal amarelo maleável, ao se emitir um juízo que  enuncie ser ouro amarelo, este juízo será analítico e nenhum conteúdo  acrescenta ao conceito de ouro. O que vale dizer que todos juízos  analíticos são apenas explicativos. Já os juízos sintéticos  trazem em seu predicado uma informação que não pode ser extraída do  conceito do sujeito e que, portanto, se encontra fora de sua definição.  Dizer que "alguns corpos são pesados" amplia o conhecimento que se tem  do conceito geral de corpo, sendo então um juízo extensivo, por  estender a compreensão que se tem previamente do sujeito. Todos juízos  analíticos são concebidos a priori, ao passo que os sintéticos  poderiam ser a posteriori, com origem na experiência, ou a  priori, formados no entendimento puro e na razão pura.
Todas as ciências  teóricas - a matemática, geometria e a física -, imaginava Kant, teriam juízos  sintéticos a priori como seus princípios fundamentais, caberia à  metafísica encontrar seus princípios sintéticos uma vez que ela teria  como fonte apenas o conhecimento puro a priori. O próximo passo  para solucionar esse problema foi descrever a estrutura da razão que  produz tais juízos. Na "Doutrina Transcendental dos Elementos",  primeira divisão da Crítica da Razão Pura, Kant apresenta em  primeiro lugar sua "Estética Transcendental", onde descreve os  princípios da sensibilidade a priori. A sensibilidade,  nesse sentido, seria a capacidade de receber representações do objetos  percebidos. Através da sensibilidade os objetos são dados e a intuição  empírica é fornecida, de acordo com as sensações provocadas pelos  objetos. Os objetos da intuição empírica são chamados fenômenos.  Os conceitos relativos aos fenômenos são gerados pelo entendimento,  tendo por base apenas as intuições da sensibilidade. Além das intuições  empíricas, a sensibilidade forneceria as intuições puras como  formas próprias que não dependem de um objeto real dos sentidos, mas são  a condição para que estes sejam percebidos em sua extensão e duração.  Tais intuições puras a priori seriam o sentido externo do espaço,  onde os objetos são representados como sendo do lado de fora do  sujeito, e o sentido interno do tempo que representa dentro do  sujeito a sensação de passagem ou permanência de um objeto. Tempo e  espaço não seriam conceitos empíricos, mas a condição da sensibilidade  para que a experiência seja possível, portanto, antecedem a esta e são  intuições puras a priori .
Depois disso, resta  descrever como o entendimento gera as representações e o entendimento  daquilo que é percebido pelo sensibilidade. A Lógica transcendental  vem determinar a origem e o alcance desses conhecimentos. Na estética,  Kant concluiu que só é possível ter intuições sensíveis e que as  supostas intuições puras, nada mais são que as formas puras da  sensibilidade - espaço e tempo - que permitem a recepção externa e  interna dos objetos. Portanto, apoiado em intuições sensiveis o entendimento  deverá pensar os objetos, a fim de gerar o conhecimento, pela união da  intuição com o pensamento. Não obstante, para que seja um conhecimento  puro, como convém à metafísica, a lógica trancendental deve analisar se  existe algum conceito que seja puro e independente da sensibilidade.  Seria então esse conhecimento oriundo de idéias trancendentais. Ao longo  da primeira crítica, Kant se esforçou em tentar mostrar a  impossibilidade do entendimento em resolver dos problemas inerentes às  idéias psicológicas, da existência da alma ou de sujeitos absolutos;  cosmológicas, sobre a origem e infinitude do universo; e  teológicas,  existência de um ser supremo.
Em sua obra seguinte, Prolegômenos  (1783), Kant resume toda essa discussão na constatação que a indecisão  quanto aos problemas da antinomia das idéais transcendentais leva à  limitação do uso da razão ao conhecimento empírico.
Servi-me para o início  desta observação da imagem sensível de um limite, para fixar as  barreiras da razão em relação ao uso que lhe é apropriado. O mundo dos  sentidos contém meros fenômenos, que ainda não são coisas em si mesmas.  Estas últimas (númenos) devem ser admitidas pelo entendimento,  justamente pelo fato de ele conhecer os objetos da experiência como  simples fenômenos. (...) A experiência, que contém tudo o que pertence  ao mundo dos sentidos, não se limita a si mesma; de cada condicionado,  chega sempre só a outro condicionado. O que deve limitá-la encontra-se  necessariamente fora dela, e este é o campo dos puros entes de  entendimento. Mas este é para nós espaço vazio, em se tratando da determinação  da natureza destes entes de entendimento e, portanto, se temos em vista  conceitos dogmamente determinados, não podemos ir além do campo da  experiência possível. (...) Mas a limitação do campo da  experiência por algo, que aliás lhe é desconhecido, é um conhecimento  que resta à razão neste ponto, mediante o qual ela não se encerra dentro  do mundo dos sentidos, nem vagueia fora do mesmo, mas, como convém ao  conhecimento do limite, circunscreve-se apenas à relação daquilo que  está fora dela com o que está contido dentro do mesmo limite (KANT, I. Prolegômenos,  III parte, § 59, p. 83).
Dentre as antinomias que  correspondem aos conflitos em que as idéias transcendentais podem  suscitar argumentos contra e a favor, aquela que diz respeito à cadeia  causal de eventos cosmológicos, também conhecida como a "Terceira  Antinomia", coloca um problema cuja solução interessa diretamente à  moral. Em suma, o problema que a razão pura aqui se põe é saber se há  uma causa necessária que determine o desenlace de toda série causal  entre as coisas no mundo, ou caso contrário se esta causa não existe e  tudo ocorre de forma livre e contingente da série causal, a grosso modo.  Com intuito de preservar a liberdade em um mundo de fenômenos  estritamente determinados, Kant propõe na primeira Crítica que as ações  livres tenham que se relacionar apenas com uma causa inteligível no  sujeito, independente da sensibilidade e que pode condicionar algum  evento fenomênico.  Esse tipo de solução visou atender um uso prático da razão cuja  fundamentação apareceria no texto que antecedeu a segunda Crítica,  Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785).


 
 
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