Maurício Caleiro: O avanço do conservadorismo desinformado
Reações a doença de Lula e à PM na USP evidenciam crise ideológica e cultural
por Maurício Caleiro, em seu blog, sugerido pela Maria Frô
As reações, na internet, a dois eventos recentes – o anúncio de que o  ex-presidente Lula está com câncer e a atuação da PM na USP – têm  causado perplexidade e repulsa pelo modo agressivo com que se expressam e  pelo que evidenciam de falta de educação, preconceito e  inadaptabilidade ao debate democrático. Mas, como veremos, há mais  pontos em comum entre essas duas manifestações de intolerância do que à  primeira vista sugerem.
Agressões ao doente
Agressões ao doente
Receber a notícia de que alguém está com câncer – ou com outra doença  tida como grave – costuma despertar compaixão no ser humano. Alguns  atribuem tal reação a uma suposta bondade inerente à nossa espécie,  acreditando que por baixo das máscaras que adotamos para a vida em  sociedade vicejam corações plenos de boa intenção; os  não-rousseaunianos, mais reticentes, afirmam tratar-se de uma reação  ditada pelo instinto de preservação: o temor de que venhamos a padecer  da mesma enfermidade faz com que nos identifiquemos com a dor alheia  como forma de esconjurá-la.
Seja como for, considera-se que festejar e regojizar-se com o anúncio  da doença alheia é reação que ultrapassa todos os limites do bom senso e  da convivência em sociedade. É por isso que o que se viu, na internet  mas também nas redações, logo após o anúncio de que Lula está acometido  de um câncer na laringe, marca um dos pontos mais baixos do debate  público no Brasil. No momento de maior fragilidade do ex-mandatário,  deu-se vazão a todo o ódio e preconceito de classe acumulado nos anos em  que ele esteve no poder.
O texto definitivo sobre o caso veio da pena cada vez mais afiada de  Maria Inês Nassif, que entre outros pontos relevantes apontou que não é  de hoje que o respeito mínimo devido a todo presidente eleito não tem  lugar quando se trata de Lula da Silva – e que entre os que através de  tal procedimento desrespeitam a própria instituição da Presidência está a  própria mídia, que deveria dar o exemplo.
Insultos aos estudantes
Pois nem bem as forças democráticas se recuperavam de tais excessos  agressivos – que levaram até jornalistas notadamente conservadores a  reclamar – e o país já se via diante de um novo efeito-manada, uma onda  de insultos contra estudantes da USP que, em reação contrária à decisão  (tomada em assembleia própria) de desocupar o prédio administrativo da  FFLCH (Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas) decidiram  ocupar a Reitoria para continuar protestando contra a ação da PM no  campus, com revistas constantes, que culminaram na prisão de três alunos  de Filosofia flagrados com um cigarro de maconha.
Daí em diante o que se viu, mesmo entre autointitulados esquerdistas,  foi uma onda de protestos contra o que chamam de “os maconheiros da  USP”. Mesmo deixando de lado a generalização descabida, há, em pleno  século XXI – quando as principais democracias reconhecem que o uso de  maconha é questão de foro pessoal e do âmbito da saúde, não da segurança  pública – algo de intrinsecamente anacrônico no uso do ajetivo  “maconheiro” como forma de promover estigmatização e desqualificação.  Além disso, assim como ocorreu com a doença do ex-presidente, o que o  fenômeno da reação virulenta à invasão da Reitoria da USP nos traz é,  uma vez mais, o ódio de classe e os recalques de fundo psicológico,  vindos à tona de forma agressiva e com vocabulário tosco. A internet  enquanto catarse.
A herança do desmanche
A realidade, porém, é bem mais complexa do que os histéricos querem  fazer crer. Como explica de forma detalhada o professor da USO Pablo  Ortallado, em ótimo artigo, a violência na instituição está diretamente  ligada a um processo de restrição cada vez maior do exercício da  democracia interna. Por meio deste, a USP é, hoje, uma das universidades  públicas brasileiras em que professores, servidores e alunos têm o  menor peso nas decisões importantes, a cargo de colegiados de membros de  estâncias burocráticas superiores que se transformaram em verdadeiros  feudos, onde o poder se perpetua nas mãos de poucos.
Em decorrência disso, cerceia-se ao máximo o raio de ação política  dentro das regras do jogo por parte de alunos, professores e  funcionários. Ora, quem já pássou por uma ditadura sabe: quando as  regras reprimem o exercício da democracia, é dever do democrata  desobedecer e lutar pela modificação delas. Achar que a brutal repressão  institucional a que a USP vem sendo submetida nos últimos 20 anos iria  ser aceita passivamente é subestimar a inteligência dos uspianos.
Agrava essa situação o modelo urbanístico adotado pela universidade  paulista, que é criticado, entre outros, pela arquiteta e professora da  Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU/USP) Raquel Ronik, o qual  colaboraria para a segregação social no campus e entre moradores da  cidade e uspianos, como apontam os alunos de Relações Internacionais  Leonardo Calderoni e Pedro Charbel, em artigo que denuncia a forma  manipuladora como o conceito de autonomia é instrumentalizado pela mídia  e pelas autoridades universitárias.
O PSDB tem um papel preponderante nesse estado de coisas, não só  porque, à frente do governo de São Paulo há 17 anos, é co-responsável  pelo estágio urbanístico-social-institucional da USP, mas porque José  Serra – que não nomeou o candidato a reitor que ocupava o primeiro lugar  na lista tríplice, preferindo o polêmico Rodas – e Geraldo Alckmin  estavam a cargo do governo nas duas vezes em que a Tropa de Choque da  PM, num ato inimaginável numa verdadeira democracia, invadiu o campus – a  mais recente na manhã de hoje -, utilizando de violência desmedida  contra estudantes desarmados.
PM no campus
PM no campus
A reação de apoio à ação da polícia, mesmo nas raras vezes em que é  expressada de forma polida e educada, evidencia o profundo  conservadorismo que marca a sociedade brasileira atual. Trata-se de um  paradoxo: no momento mesmo em que 28 milhões deixaram de ser miseráveis e  40 milhões ascenderam à classe média, e que o Brasil tornara-se  efetivamente um player na política internacional, o debate sobre  questões internas involui não apenas na forma (a difamação e os ataques  pessoais substituindo o diálogo civilizado e a argumentação), mas também  no conteúdo (com pressupostos que há pouco eram exclusivos de fanáticos  de direita tornando-se de uso corrente entre os estratos médios e  altos).
Seria preciso uma alta dose de auto-engano para não se aperceber que o  país, tanto em termos culturais quanto ideológicos, claramente  retrocedeu, se comparado àquele de 40, 50 anos atrás. Não há como  comparar o nível das discussões públicas hoje, no Brasil, àquele que se  deu, por exemplo, no bojo do processo de redemocratização do país.
Regredimos?
Antes que as palavras aqui ditas sejam distorcidas, cabe assinalar  que não se quer com isso, de forma alguma, sugerir que o ambiente da  ditadura era mais profícuo em termos culturais e ideológicos do que os  atuais. Ainda que isso seja verdade em alguns períodos – notadamente  entre 1964 e 1967, hiato que o crítico literário Roberto Shwarz  qualificou como os “anos de hegemonia cultural da esquerda” -, isso se  deve mormente ao ímpeto antiditatorial de artistas da coragem e do  talento de um Chico Buarque ou de um Vianinha – e à necessidade de  unir-se no combate a um inimigo em comum.
Na verdade, a crise ideológica e cultural que hoje uma vez mais se  agrava tem como origem justamente a ação sistemática da ditadura contra  as formas culturais mais autênticas e mais revolucionárias, em prol do  investimento vultoso na constituição de uma sociedade televisiva de  massas – uma herança que os civis de direita que marcaram o longo  período de transição para a democracia só açularam, muitos com proveito  eleitoral.
O preço da desideologização
O preço da desideologização
Há uma década, a centro-esquerda tem sido eleita, é verdade, mas,  como as eleições que culminaram com a vitória de Dilma Rousseff  evidenciaram de forma inconteste, não foi através de uma proposta  programática de perfil ideológico – muito pelo contrário: tal como o  “Lulinha Paz e Amor” de oito anos antes, a hoje presidenta submeteu-se  ao regime padrão de marquetagem, chegando, ao final da campanha, ante as  baixarias desmedidas de José Serra, a retroceder em questões de suma  importância, como o aborto.
É precisamente quando se evidencializou de forma mais clara, àqueles  que não se recusaram a ver, que a crise ideológica transcendia as  questões colocadas pelo neoliberalismo, as quais dominaram o período  imediatamente anterior (e, muitas delas, continuam na ordem do dia), e  que a crise cultural, como qualquer crise estética, era também uma crise  ética.
“Mas o importante é que eles venceram” – dirá o esquerdista  pragmático. Sim, venceram, mas o preço que a sociedade brasileira como  um todo vem pagando por essa recusa em um debate ideológico é uma  despolitização da política, uma desideologização da esfera pública que  ao final só beneficia os grandes grupos de mídia corporativa, os quais  têm como interesse precípuo obter pontos no Ibope, e não levar cultura e  educação ao público espectador, como “exige” a Constituição.
Dieta indigesta
A sobreposição do marketing à política e a naturalização das  telecomunicações como meio de entretenimento – seja através das  narrativas ficcionais das novelas ou das narrativas protojormalísticas  dos telejornais – certamente desempenham um papel fundamental nesse  processo de alavancagem do conservadorismo desinformado, pois não há  como evoluir ética e ideologicamente com uma dieta de Datenas, Lucianos  Huck, CQCs e coisas do gênero. Um país que, há 11 anos, quase para  durante meses para assistir a Big Brother Brasil está profundamente  enfermo em termos de ideologia, ética e estética – e negar isso em nome  de uma suposta pluralidade democrática de escolhas é tapar o sol com a  peneira.
E a relação entre política e mídia está diretamente imbricada na  questão: cada vez que o governo Dilma demite um ministro após um  factoide da Veja, não só estimula um jornalismo-denúncia – forte em  escândalo mas fraco em evidências -, mas, ao fortalecer a posição da  revista ante o público, está, na prática, incentivando a difusão de um  ideário conservador (inerente à publicação) que transcende a política e  se torna moeda corrente em questões comportamentais e culturais.
É pelas razões acima expostas que já passa da hora dos governos ditos  de centro-esquerda renunciarem à ferrugem neoliberal que emperra o  protagonismo do Estado na área cultural e tomarem as rédeas de um  projeto de elevação do nível educacional e cultural do povo brasileiro,  sob a pena não apenas de serem derrotados eleitoralmente, mas de legarem  ao futuro um país ainda mais conservador, ignorante e truculento do que  o que herdaram.
 
 
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