Grandes grifes hasteiam a bandeira da
responsabilidade social, do respeito, do comportamento ético e do
compromisso com a verdade. Mascara-se, no entanto, uma realidade cruel e
pungente: uma produção barata e degradante.
Por Tiago Muniz Cavalcanti* | Categoria(s): Artigos
Se o assunto é a transformação da realidade
social, a dissimulação é a tônica dentre os detentores do poder
econômico. O discurso é o mesmo e já não comove: prega-se o respeito ao
meio ambiente, à concorrência leal e às leis trabalhistas. A
sustentabilidade do desenvolvimento sob os aspectos ambiental, econômico
e humano tornou-se lugar-comum de uso proveitoso, sem o qual não se
atinge a desejável respeitabilidade da opinião pública. São palavras ao
vento com interesses econômicos acaçapados.
É assim na indústria da moda. Grandes grifes hasteiam a bandeira da
responsabilidade social, do respeito, do comportamento ético e do
compromisso com a verdade. Criam códigos de conduta que contemplam
missões, valores e princípios dignos de um Estado Democrático de Direito
e, com isso, vinculam sua imagem à probidade, ao decoro e aos direitos
humanos. Contam com público fiel à marca e ao estilo de vida que lhe
corresponde.
Mascara-se, no entanto, uma realidade cruel e pungente: uma produção
barata e degradante. Pulveriza-se intensamente a cadeia produtiva:
contrata-se e subcontrata-se, dissipando-se os riscos da atividade.
Negocia-se a prestação dos serviços sob o rótulo de relações
estritamente comerciais. Paga-se pouco, muito pouco: o limite necessário
para garantir o lucro máximo.
A consequência não é outra, senão uma tragédia social. Milhares de
costureiros, brasileiros e imigrantes, homens e mulheres, socialmente
vulneráveis, submetidos a condições de trabalho ofensivas à dignidade.
Espremidas em um pequeno imóvel localizado na zona central da cidade de
São Paulo, as famílias residem em habitações coletivas e trabalham
diuturnamente em manifesta degradação, expostas a riscos iminentes de
incêndio e eletrocussão.
À geração de riquezas econômicas não corresponde correlata inserção
social da pessoa trabalhadora, função primária da labuta humana.
Trata-se de trabalho escravo na cadeia das grifes de grande renome e
indubitável solidez econômica. Uma escravidão estrutural, pautada na
degradação humana. Uma escravidão perspicaz, cuja vítima desconhece seu
algoz. Uma escravidão social pós-moderna, onde os grilhões não estão
visíveis aos olhos da sociedade. Uma escravidão impune.
Não raro,
os escravagistas pós-modernos, que ditam as regras de um mercado
nefasto, saem ilesos nas ações judiciais que lhes são movidas
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Trabalho escravo contemporâneo
Não raro, os escravagistas pós-modernos, que ditam as regras de um mercado nefasto, saem ilesos nas ações judiciais que lhes são movidas. Mais das vezes, o Judiciário afasta a responsabilidade jurídica daqueles que contribuem diretamente para o ilícito, seja por desconhecer o conceito contemporâneo de trabalho escravo, seja por aceitar as escusas defensivas das grandes grifes, que possuem notória capacidade de mobilização político-jurídica em prol dos seus interesses e invariavelmente alegam desconhecimento do fato. Seja, ainda, por pura ideologia.
Não raro, os escravagistas pós-modernos, que ditam as regras de um mercado nefasto, saem ilesos nas ações judiciais que lhes são movidas. Mais das vezes, o Judiciário afasta a responsabilidade jurídica daqueles que contribuem diretamente para o ilícito, seja por desconhecer o conceito contemporâneo de trabalho escravo, seja por aceitar as escusas defensivas das grandes grifes, que possuem notória capacidade de mobilização político-jurídica em prol dos seus interesses e invariavelmente alegam desconhecimento do fato. Seja, ainda, por pura ideologia.
Foi o que ocorreu em recente decisão do TRT da 2ª Região (São Paulo/SP)
que, em sede de mandado de segurança, utilizado como via de
recorribilidade interlocutória, já prejulgou o caso posto e afastou a
responsabilidade da grande grife. Os fundamentos não são novos: os
trabalhadores resgatados possuíam “empresa regularmente constituída”;
inexistência “de qualquer forma de intimidação visando restringir a
liberdade de locomoção”; e, mais grave, nas condições a que estavam
submetidas as vítimas, “vive grande parte da população brasileira”. Como
se vê, a decisão mostra-se conservadora sob os aspectos jurídico e
social.
A primazia da realidade cedeu à roupagem do formalismo e ao
tecnicismo da teoria geral dos contratos mercantis. Desconsiderou-se a
robustez das provas colhidas na diligência promovida pelos órgãos
públicos fiscalizadores, que não deixava margem a dúvidas quanto ao
comando e logística traçados pela grife, beneficiária direta da mão de
obra das vítimas que produziam exclusivamente para a marca.
Dignidade humana
Olvidou-se o emérito julgador que o bem jurídico tutelado pelo trabalho escravo se transmudou na sua acepção contemporânea. Atualmente, não mais se exige a presença de instrumentos restritivos da liberdade, como práticas usuais de outrora, mas condições aviltantes à dignidade da pessoa trabalhadora provenientes da disparidade socioeconômica entre vítima e escravocrata moderno. A dignidade humana passou a ser, portanto, o bem jurídico protegido pelo crime de redução à condição análoga à de escravo, podendo ser atingida – inclusive, e não apenas – pela restrição da liberdade de ir e vir.
Olvidou-se o emérito julgador que o bem jurídico tutelado pelo trabalho escravo se transmudou na sua acepção contemporânea. Atualmente, não mais se exige a presença de instrumentos restritivos da liberdade, como práticas usuais de outrora, mas condições aviltantes à dignidade da pessoa trabalhadora provenientes da disparidade socioeconômica entre vítima e escravocrata moderno. A dignidade humana passou a ser, portanto, o bem jurídico protegido pelo crime de redução à condição análoga à de escravo, podendo ser atingida – inclusive, e não apenas – pela restrição da liberdade de ir e vir.
O último fundamento
da decisão traz consigo um preconceito de classe |
O último fundamento da decisão talvez seja o mais preocupante, pois
traz consigo um preconceito ínsito. Um preconceito de classe. Afastar a
característica degradante pelo simples fato de que grande parte da
população brasileira também vive em condições precárias, inseguras e
compartilhando cômodos revela o pensamento excludente que pauta grande
parte da elite brasileira. Trocando em miúdos, é dar aos pobres a
pobreza; aos miseráveis, a miséria.
É mais aceitável absolver do que condenar. É mais fácil não enxergar o
elo existente entre as regras impostas de cima para baixo e as
condições precárias de trabalho. É mais confortável virar as costas para
o necessário processo de aprimoramento contínuo de uma cadeia marcada
pela escravidão pós-moderna.
É inegável que a tomadora final dos serviços prestados lá embaixo, em
condições subumanas, se omitiu no seu dever social, jurídico e cívico
de conhecer os métodos materiais e humanos utilizados para a confecção
dos produtos que encomenda. Não se preocupou em aferir a real capacidade
produtiva daqueles que lhe prestam serviços e não teve interesse,
sequer, em verificar como seu produto foi fabricado. Beneficiou-se
diretamente da força de trabalho de toda a cadeia produtiva, mas
deliberadamente fechou os olhos para as condições da produção, pondo-se
em condição de ignorância. Trata-se de uma cegueira absolutamente
proposital em face daquilo que ocorre ao seu redor.
A situação exige reflexão. Demanda colaboração da sociedade civil
organizada, dos órgãos públicos responsáveis pela luta contra a
escravidão e, especialmente, do Judiciário. Impõe-se que os magistrados
assumam um papel político proativo, tomando para si o dever de
contribuir para a transformação da realidade social. É mister, em
arremate, desvelar a omissão culposa da elite da moda e arrebentar os
grilhões camuflados que acorrentam milhares de trabalhadores
brasileiros.
* Tiago Muniz Cavalcanti é procurador do Trabalho em São Paulo e
membro da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo
(Conaet) do Ministério Público do Trabalho
Saiba mais:
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fonte: http://reporterbrasil.org.br/2013/11/os-grilhoes-ocultos-da-elite-brasileira/
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