Grandes grifes hasteiam a bandeira da 
responsabilidade social, do respeito, do comportamento ético e do 
compromisso com a verdade. Mascara-se, no entanto, uma realidade cruel e
 pungente: uma produção barata e degradante.
Por Tiago Muniz Cavalcanti* | Categoria(s): Artigos
Se o assunto é a transformação da realidade 
social, a dissimulação é a tônica dentre os detentores do poder 
econômico. O discurso é o mesmo e já não comove: prega-se o respeito ao 
meio ambiente, à concorrência leal e às leis trabalhistas. A 
sustentabilidade do desenvolvimento sob os aspectos ambiental, econômico
 e humano tornou-se lugar-comum de uso proveitoso, sem o qual não se 
atinge a desejável respeitabilidade da opinião pública. São palavras ao 
vento com interesses econômicos acaçapados.
É assim na indústria da moda. Grandes grifes hasteiam a bandeira da 
responsabilidade social, do respeito, do comportamento ético e do 
compromisso com a verdade. Criam códigos de conduta que contemplam 
missões, valores e princípios dignos de um Estado Democrático de Direito
 e, com isso, vinculam sua imagem à probidade, ao decoro e aos direitos 
humanos. Contam com público fiel à marca e ao estilo de vida que lhe 
corresponde.
Mascara-se, no entanto, uma realidade cruel e pungente: uma produção 
barata e degradante. Pulveriza-se intensamente a cadeia produtiva: 
contrata-se e subcontrata-se, dissipando-se os riscos da atividade. 
Negocia-se a prestação dos serviços sob o rótulo de relações 
estritamente comerciais. Paga-se pouco, muito pouco: o limite necessário
 para garantir o lucro máximo.
Pagos por produção, os trabalhadores resgatados em março deste ano continuaram costurando mesmo durante a fiscalização. Eles produziam para as grifes Emme, Cori e Luigi Bertolli (Foto: Anali Dupré)
A consequência não é outra, senão uma tragédia social. Milhares de 
costureiros, brasileiros e imigrantes, homens e mulheres, socialmente 
vulneráveis, submetidos a condições de trabalho ofensivas à dignidade. 
Espremidas em um pequeno imóvel localizado na zona central da cidade de 
São Paulo, as famílias residem em habitações coletivas e trabalham 
diuturnamente em manifesta degradação, expostas a riscos iminentes de 
incêndio e eletrocussão.
À geração de riquezas econômicas não corresponde correlata inserção 
social da pessoa trabalhadora, função primária da labuta humana. 
Trata-se de trabalho escravo na cadeia das grifes de grande renome e 
indubitável solidez econômica. Uma escravidão estrutural, pautada na 
degradação humana. Uma escravidão perspicaz, cuja vítima desconhece seu 
algoz. Uma escravidão social pós-moderna, onde os grilhões não estão 
visíveis aos olhos da sociedade. Uma escravidão impune.
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Não raro,
 os escravagistas pós-modernos, que ditam as regras de um mercado 
nefasto, saem ilesos nas ações judiciais que lhes são movidas | 
Trabalho escravo contemporâneo
Não raro, os escravagistas pós-modernos, que ditam as regras de um mercado nefasto, saem ilesos nas ações judiciais que lhes são movidas. Mais das vezes, o Judiciário afasta a responsabilidade jurídica daqueles que contribuem diretamente para o ilícito, seja por desconhecer o conceito contemporâneo de trabalho escravo, seja por aceitar as escusas defensivas das grandes grifes, que possuem notória capacidade de mobilização político-jurídica em prol dos seus interesses e invariavelmente alegam desconhecimento do fato. Seja, ainda, por pura ideologia.
Não raro, os escravagistas pós-modernos, que ditam as regras de um mercado nefasto, saem ilesos nas ações judiciais que lhes são movidas. Mais das vezes, o Judiciário afasta a responsabilidade jurídica daqueles que contribuem diretamente para o ilícito, seja por desconhecer o conceito contemporâneo de trabalho escravo, seja por aceitar as escusas defensivas das grandes grifes, que possuem notória capacidade de mobilização político-jurídica em prol dos seus interesses e invariavelmente alegam desconhecimento do fato. Seja, ainda, por pura ideologia.
Foi o que ocorreu em recente decisão do TRT da 2ª Região (São Paulo/SP)
 que, em sede de mandado de segurança, utilizado como via de 
recorribilidade interlocutória, já prejulgou o caso posto e afastou a 
responsabilidade da grande grife. Os fundamentos não são novos: os 
trabalhadores resgatados possuíam “empresa regularmente constituída”; 
inexistência “de qualquer forma de intimidação visando restringir a 
liberdade de locomoção”; e, mais grave, nas condições a que estavam 
submetidas as vítimas, “vive grande parte da população brasileira”. Como
 se vê, a decisão mostra-se conservadora sob os aspectos jurídico e 
social.
Na semana passada, uma liminar que bloqueava bens da M.Officer por caso de escravidão em sua linha de produção foi cassada pela Justiça (Foto: MPT)
A primazia da realidade cedeu à roupagem do formalismo e ao 
tecnicismo da teoria geral dos contratos mercantis. Desconsiderou-se a 
robustez das provas colhidas na diligência promovida pelos órgãos 
públicos fiscalizadores, que não deixava margem a dúvidas quanto ao 
comando e logística traçados pela grife, beneficiária direta da mão de 
obra das vítimas que produziam exclusivamente para a marca.
Dignidade humana
Olvidou-se o emérito julgador que o bem jurídico tutelado pelo trabalho escravo se transmudou na sua acepção contemporânea. Atualmente, não mais se exige a presença de instrumentos restritivos da liberdade, como práticas usuais de outrora, mas condições aviltantes à dignidade da pessoa trabalhadora provenientes da disparidade socioeconômica entre vítima e escravocrata moderno. A dignidade humana passou a ser, portanto, o bem jurídico protegido pelo crime de redução à condição análoga à de escravo, podendo ser atingida – inclusive, e não apenas – pela restrição da liberdade de ir e vir.
Olvidou-se o emérito julgador que o bem jurídico tutelado pelo trabalho escravo se transmudou na sua acepção contemporânea. Atualmente, não mais se exige a presença de instrumentos restritivos da liberdade, como práticas usuais de outrora, mas condições aviltantes à dignidade da pessoa trabalhadora provenientes da disparidade socioeconômica entre vítima e escravocrata moderno. A dignidade humana passou a ser, portanto, o bem jurídico protegido pelo crime de redução à condição análoga à de escravo, podendo ser atingida – inclusive, e não apenas – pela restrição da liberdade de ir e vir.
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O último fundamento da decisão traz consigo um preconceito de classe | 
O último fundamento da decisão talvez seja o mais preocupante, pois 
traz consigo um preconceito ínsito. Um preconceito de classe. Afastar a 
característica degradante pelo simples fato de que grande parte da 
população brasileira também vive em condições precárias, inseguras e 
compartilhando cômodos revela o pensamento excludente que pauta grande 
parte da elite brasileira. Trocando em miúdos, é dar aos pobres a 
pobreza; aos miseráveis, a miséria.
É mais aceitável absolver do que condenar. É mais fácil não enxergar o
 elo existente entre as regras impostas de cima para baixo e as 
condições precárias de trabalho. É mais confortável virar as costas para
 o necessário processo de aprimoramento contínuo de uma cadeia marcada 
pela escravidão pós-moderna.
Em janeiro deste ano uma decisão de primeira instância da Justiça absolveu a Lojas Marisa por caso de trabalho escravo (Foto: Maurício Hashizume)
É inegável que a tomadora final dos serviços prestados lá embaixo, em
 condições subumanas, se omitiu no seu dever social, jurídico e cívico 
de conhecer os métodos materiais e humanos utilizados para a confecção 
dos produtos que encomenda. Não se preocupou em aferir a real capacidade
 produtiva daqueles que lhe prestam serviços e não teve interesse, 
sequer, em verificar como seu produto foi fabricado. Beneficiou-se 
diretamente da força de trabalho de toda a cadeia produtiva, mas 
deliberadamente fechou os olhos para as condições da produção, pondo-se 
em condição de ignorância. Trata-se de uma cegueira absolutamente 
proposital em face daquilo que ocorre ao seu redor.
A situação exige reflexão. Demanda colaboração da sociedade civil 
organizada, dos órgãos públicos responsáveis pela luta contra a 
escravidão e, especialmente, do Judiciário. Impõe-se que os magistrados 
assumam um papel político proativo, tomando para si o dever de 
contribuir para a transformação da realidade social. É mister, em 
arremate, desvelar a omissão culposa da elite da moda e arrebentar os 
grilhões camuflados que acorrentam milhares de trabalhadores 
brasileiros.
* Tiago Muniz Cavalcanti é procurador do Trabalho em São Paulo e 
membro da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo 
(Conaet) do Ministério Público do Trabalho
Saiba mais:
Justiça determina bloqueio de R$ 1 mi de dona da M.Officer por trabalho escravo
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fonte: http://reporterbrasil.org.br/2013/11/os-grilhoes-ocultos-da-elite-brasileira/ 
 
 
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