As semelhanças entre 1964 e 2014
ter, 04/03/2014 - 10:04 - Atualizado em
04/03/2014 - 13:16
Santos Vahlis, hoje em dia, é mais conhecido pelos edifícios
que deixou no Rio de Janeiro e pelas festas que proporcionou nos anos 50. Foi
um dos grandes construtores do bairro de Copacabana.
Venezuelano, mudou-se para o Brasil, trabalhou com a
importação de gasolina e tentou se engatar nas concessões de refinarias no
governo Dutra. Foi derrotado pela maior influência dos grupos cariocas já
estabelecidos.
Nos anos seguintes, foi um dos financiadores da campanha do
general Estillac Leal para a presidência do Clube Militar, em torno da bandeira
do monopólio estatal do petroleo. Torna-se amigo de Leonel Brizola, defensor de
Jango.
Provavelmente graças ao fato de ser bom cliente dos jornais,
com seus anúncios imobiliários, tinha uma coluna no Correio da Manhã, cujo
ghost writer era o grande Franklin de Oliveira.
Tentou adquirir o jornal “A Noite” para fortalecer a
imprensa pró-Jango. Foi atropelado pelo pessoal do IBAD (Instituto Brasileiro
de Ação Democrática) que, em vez de comprar o jornal, comprou sua opinião por
Cr$ 5 milhões. A CPI que investigou a transação teve como integrante o deputado
Ruben Paiva.
Por sua atuação, Vahlis sofreu ataques de toda ordem. Contra
ele, levantaram a história de que teria feito uma naturalização ilegal. Em
1961, em pleno inverno, foi preso e jogado nu em uma cela de cadeia, a ponto do
detetive que o prendeu temer por sua vida.
Como era possível a perseguição implacável dos IPMs
(Inquéritos Policial Militares), de delegados e dos Ministérios Públicos
estaduais, contra aliados do próprio governo?
Esse mesmo fenômeno observou-se nos últimos anos, com os
abusos cometidos no julgamento da AP 470, envolvendo não um ou dois Ministros
do STF (Supremo Tribunal Federal), mas cinco, seis deles, endossando
arbitrariedades que escandalizaram juristas conservadores.
Características da democracia
Para tentar entender o fenômeno, andei trabalhando em um
estudo que pretendo apresentar no evento “50 anos da ditadura”, que ocorrerá a
partir da semana que vem no Recife.
Aqui, um pequeno quadro esquemático que explica porque 2014
é tão semelhante a 1964 – embora torçamos por um desfecho diferente.
1. A democracia é um processo
permanente de inclusões sucessivas. Também é o regime de maior instabilidade (e
medo) das pessoas. Nos regimes autoritários, na monarquia, nos sistemas de
castas, não há ascensão vertical das pessoas – nem sua queda. Na democracia de
mercado há a instabilidade permanente, mesmo para os bem situados. Teme-se o
dia seguinte, a perda do emprego, das posses, do status.
2. Além disso, há repartição entre
os poderes que abre espaço para a montagem de alianças e acordos econômicos,
nos quais os grandes grupos econômicos se aliam aos grupos de mídia, através
deles infuenciam os diversos poderes de Estado.
3. Cada época de inclusão gera novas
classes de incluídos que cumprem seu papel de entrar no mercado de trabalho,
ganhar capacidade de consumo e, no momento seguinte, cidadania e capacidade de
organização. Gera resistências tanto na classe média (medo da perda de status)
quanto nos de cima (perda de influência).
Aí, cria-se uma divisão no mercado de opinião que será
explorado a seguir.
O mercado de opinião
Simplificadamente, dividi o mercado de
opinião em dois grupos.
O primeiro é o mercado liderado pelos Grupos de Mídia. Por definição,
é um mercado que influencia preponderantemente os setores já estabelecidos que
já passaram pela fase da inclusão, do emprego, da carreira, integrando-se no
mercado de opinião aos estabelecidos da fase anterior.
Por suas características, os grupos mais resistentes ao novo
são os estamentos militar, jurídico, alta hierarquia pública e a alta e
média classes médias – especialmente os estamentos que trabalham em grandes
companhias hierarquizadas. E também a classe média profissional liberal, que
depende de redes de relacionamentos.
A razão é simples. Vivem em estruturas burocráticas,
hierarquizadas, nas quais cumprem uma carreira, sujeitando-se a promoções ao
longo de sua vida útil. Por isso mesmo, a renovação se dá de forma muito lenta,
proporcional à lentidão com que mudam os lugares nessas corporações. São os
mais apegados ao status quo.
Por todas essas características – da insegurança, da
carreira construída passo a passo – esses grupos são extremamente influenciados
por movimentos de manada. Por segurança, querem pensar do mesmo modo que a
maioria, ou que o status quo do seu grupo (ou de suas chefias).
Esse grupo pode ser denominado conceitualmente de opinião
pública midiática. Ele detém o poder, a capacidade de influenciar leis,
julgamentos, posições.
Mas não detém voto. Mesmo porque, quem têm votos é a
maioria.
O segundo grupo é o dos novos incluídos econômicos e dos
incluídos políticos mas que não tem posição de hegemonia. Entram aí sindicatos,
organizações sociais, o povão pré-organização etc, enfim, a maioria da
população – especialmente em países com tão grandes diferenças de renda. E
entra o Congresso Nacional.
Os canais de informação desse público são os sindicatos,
organizações sociais e os partidos políticos.
É um público que detém os votos, mas não detém poder.
O conflito entre poder e voto
Em cada período de inclusão, o partido que entende as
necessidades dos incluídos ganha as eleições. Foi assim nos EUA com o Partido
Republicano no século 19, com o Partido Democrata no século 20.
Processos de inclusão diminuem as diferenças de renda,
ampliam a classe média e, quando o país se civiliza, garantem a estabilidade
política – porque a maioria se torna classe média.
Mas em países culturalmente atrasados – como o Brasil –
qualquer gesto em direção à inclusão sofre enormes resistências dos setores
tradicionais.
Não se trata de viés político, ideológico (no sentido mais
amplo), mas de atraso mesmo, um atraso entranhado, anti-civilizatório,
que atinge não apenas os hommers simpsons, mas acadêmicos conservadores,
magistrados, empresários sem visão. E, especialmente, os grupos de mídia. Os de
baixo temem perder status; os de cima, temem perder poder.
O partido que entende os novos movimentos colhe leitor de
baciada.
O único fator capaz de derrubá-lo são as crises econômicas
(o fenômeno do populismo é o de procurar satisfazer de qualquer maneira as
massas descuidando-se da economia) ou o golpe.
A reação através do golpe
Sem perspectivas eleitorais, os segmentos incluídos na
chamada opinião pública midiática recorrem ao golpismo puro e simples.
Consiste em fomentar diuturnamente o discurso do ódio e
levar a vendetta para o campo jurídico-policial. É o que levou à prisão de
Santos Vahlis e aos abusos da AP 470.
1.
Para mobilizar a classe média, a mídia levanta fantasmas capazes de despertar
medos ancestrais: o fantasma do comunismo, que destroi famílias e propriedades,
do golpe que estaria sendo preparado pelo governo, da corrupção que se alastra
etc.
2. A campanha midiática cria o clima
de ódio que se torna cada vez mais vociferante quanto menores são as chances de
mudar o governo pela via eleitoral.
3. Com a influência sobre o Judiciário e o
Ministério Público, além de denúncias concretas, qualquer fato vira denúncia
grave e, na ponta, haverá um inquérito para criminaliza-lo.
4. Aí se entra no ponto central: as
agressões, os atentados ao direito, as manipulações provocam reações entre
aliados do governo. Qualquer reação, por mais insignificante, serve para
alimentar a versão de que o governo planeja um golpe. O ponto central do golpe
consiste em fomentar reações que materializem as suspeitas de que é o governo
que planeja o golpe.
É nesse ponto que o golpismo e o radicalismo de esquerda se
dão as mãos.
Confiram esse vídeo aqui do Arnaldo Jabor, sobre uma
proposta de um deputado obscuro do PT. O próprio Jabor considera-o obscuro. Mas
repare nas conclusões que tira. Foi buscá-las em uma nave do tempo diretamente
de 1964
O grande problema de Jango foram os aliados iludidos pela
revolução cubana e pela própria campanha da mídia - que superestimava,
intencionalmente, os poderes das ligas camponesas e quetais.
O histórico trabalho de Wanderley Guilherme dos Santos, em
1962, expos de forma magistral e trágica como se dava essa manipulação
das reações.
Esse mesmo clima em relação às ligas camponesas, a mídia
tentou recriar com as fantasias sobre a influências das Farcs no Brasil, sobre
os dólares cubanos transportados em garrafas de rum e um sem-número de artigos
de colunistas denunciando o suposto autoritarismo de Lula.
Lula e Dilma fugiram à armadilha, recorrendo ao que chamei,
na época, de republicanismo ingênuo, às vezes até com um cuidado excessivo.
Não tomaram nenhuma atitude contra a mídia; não pressionaram
o STF; têm sido cautelosos de maneira até exagerada; não permitiram que o PT
saísse às ruas em protesto contra os abusos da AP 470.
Apesar de entender esse caminho, Jango não conseguiu segurar
os seus. Houve radicalização intensa, conduzida por Leonel Brizola e Darcy
Ribeiro, pelo PCB de Luiz Carlos Prestes e por lideranças sindicais, que
acabaram proporcionando o álibi de que os golpistas precisavam.
Hoje em dia não há mais a guerra fria, não há uma
republiqueta encravada em um continente golpista, não há o descuido com a
economia.
No entanto, há um ponto em comum nos dois períodos: o ódio
que a campanha midiática provocou em diversos setores de classe média crescerá
em razão inversamente proporcional ao crescimento eleitoral da oposição. E o
mote central será essa a Copa do Mundo e o mote de que o governo gastou em
estádios o dinheiro da saúde.
Há uma guerra de comunicação central.
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