É MEU DEVER DIZER AOS JOVENS O QUE É UM GOLPE DE
ESTADO
**Há cheiro de 1964 no ar. Não apenas
no Brasil, mas também nas vizinhanças. Acho então que é chegada a hora de dar o
meu depoimento.
Dizer a vocês, jovens de 20, 30, 40
anos de meu Brasil, o que é de fato uma ditadura.
Se a Ditadura Militar tivesse sido
contada na escola, como são a Inconfidência Mineira e outros episódios pontuais
de usurpação da liberdade em nosso país, eu não estaria me vendo hoje obrigada
a passar sal em minhas tão raladas feridas, que jamais pararam de sangrar.
Fazer as feridas sangrarem é
obrigação de cada um dos que sofreram naquele período e ainda têm voz para
falar.
Alguns já se calaram para sempre.
Outros, agora se calam por vontade própria. Terceiros, por cansaço. Muitos, por
desânimo. O coração tem razões…
Eu falo e eu choro e eu me sinto um
bagaço. Talvez porque a minha consciência do sofrimento tenha pegado meio no
tranco, como se eu vivesse durante um certo tempo assim catatônica, sem prestar
atenção, caminhando como cabra cega num cenário de terror e desolação,
apalpando o ar, me guiando pela brisa. E quando, finalmente, caiu-me a venda,
só vi o vazio de minha própria cegueira.
Meu irmão, meu irmão, onde estás? Sequer o corpo jamais tivemos.
Outro dia, jantei com um casal de
leais companheiros dele. Bronzeados, risonhos, felizes. Quando falei do
sofrimento que passávamos em casa, na expectativa de saber se Tuti estaria
morto ou vivo, se havia corpo ou não, ouvi: “Ah, mas se soubessem como éramos
felizes… Dormíamos de mãos dadas e com o revólver ao lado, e éramos
completamente felizes”. E se olharam, um ao outro, completamente felizes.
Ah, meu deus, e como nós, as famílias dos que morreram, éramos e somos completamente infelizes!
Ah, meu deus, e como nós, as famílias dos que morreram, éramos e somos completamente infelizes!
A ditadura militar aboletou-se no
Brasil, assentada sobre um colchão de mentiras ardilosamente costuradas para
iludir a boa fé de uma classe média desinformada, aterrorizada por perversa
lavagem cerebral da mídia, que antevia uma “invasão vermelha”, quando o que, de
fato, hoje se sabe, navegava célere em nossa direção, era uma frota americana.
Deu-se o golpe! Os jovens
universitários liberais e de esquerda não precisavam de motivação mais
convincente para reagir. Como armas, tinham sua ideologia, os argumentos, os
livros. Foram afugentados do mundo acadêmico, proibidos de estudar, de
frequentar as escolas, o saber entrou para o índex nacional engendrado pela
prepotência.
As pessoas tinham as casas invadidas, gavetas reviradas, papéis e livros confiscados. Pessoas eram levadas na calada da noite ou sob o sol brilhante, aos olhos da vizinhança, sem explicações nem motivo, bastava uma denúncia, sabe-se lá por que razão ou partindo de quem, muitas para nunca mais serem vistas ou sabidas. Ou mesmo eram mortas à luz do dia. Ra-ta-ta-ta-tá e pronto.
As pessoas tinham as casas invadidas, gavetas reviradas, papéis e livros confiscados. Pessoas eram levadas na calada da noite ou sob o sol brilhante, aos olhos da vizinhança, sem explicações nem motivo, bastava uma denúncia, sabe-se lá por que razão ou partindo de quem, muitas para nunca mais serem vistas ou sabidas. Ou mesmo eram mortas à luz do dia. Ra-ta-ta-ta-tá e pronto.
E todos se calavam. A grande
escuridão do Brasil. Assim são as ditaduras. Hoje ouvimos falar dos horrores
praticados na Coreia do Norte. Aqui não foi muito diferente. O medo era igual.
O obscurantismo igual. As torturas iguais. A hipocrisia idêntica. A aceitação
da sobrevivência. Ame-me ou deixe-me. O dedurismo. Tudo igual. Em número menor
de indivíduos massacrados, mas a mesma consistência de terror, a mesma
impotência.
Falam na corrupção dos dias de hoje. Esquecem-se de falar nas de ontem. Quando cochichavam sobre “as malas do Golbery” ou “as comissões das turbinas”, “as compras de armamento”. Falavam, falavam, mas nada se apurava, nada se publicava, nada se confirmava, pois não havia CPI, não havia um Congresso de verdade, uma imprensa de verdade, uma Justiça de verdade, um país de verdade.
Falam na corrupção dos dias de hoje. Esquecem-se de falar nas de ontem. Quando cochichavam sobre “as malas do Golbery” ou “as comissões das turbinas”, “as compras de armamento”. Falavam, falavam, mas nada se apurava, nada se publicava, nada se confirmava, pois não havia CPI, não havia um Congresso de verdade, uma imprensa de verdade, uma Justiça de verdade, um país de verdade.
E qualquer empresa, grande, média ou
mínima, para conseguir se manter, precisava obrigatoriamente ter na diretoria
um militar. De qualquer patente. Para impor respeito, abrir portas, estar imune
a perseguições. Se isso não é um tipo de aparelhamento, o que é, então? Um
Brasil de mentirinha, ao som da trilha sonora ufanista de Miguel Gustavo.
Minha família se dilacerou. Meu irmão
torturado, morto, corpo não sabido. Minha mãe assassinada, numa pantomima de
acidente, só desmascarada 22 anos depois, pelo empenho do ministro José
Gregory, com a instalação da Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos no
governo Fernando Henrique Cardoso.
Meu pai, quatro infartos e a decepção
de saber que ele, estrangeiro, que dedicou vida, esforço e economias a manter
um orfanato em Minas, criando 50 meninos brasileiros e lhes dando ofício, via o
Brasil roubar-lhe o primogênito, Stuart Edgar, somando no nome homenagens aos
seus pai e irmão, ambos pastores protestantes americanos – o irmão, assassinado
por membro louco da Ku Klux Klan. Tragédia que se repetia.
Minha irmã, enviada repentinamente
para estudar nos Estados Unidos, quando minha mãe teve a informação de que sua
sala de aula, no curso de Ciências Sociais, na PUC, seria invadida pelos
militares, e foi, e os alunos seriam presos, e foram. Até hoje, ela vive no
exterior.
Barata tonta, fiquei por aí, vagando
feito mariposa, em volta da fosforescência da luz magnífica de minha profissão
de colunista social, que só me somou aplausos e muitos queridos amigos, mas
também uma insolente incompreensão de quem se arbitrou o insano direito de me
julgar por ter sobrevivido.
Outra morte dolorida foi a da atriz,
minha verdadeira e apaixonada vocação, que, logo após o assassinato de minha
mãe, precisei abdicar de ser, apesar de me ter preparado desde a infância para
tal e já ter então alcançado o espaço próprio. Intuitivamente, sabia que
prosseguir significaria uma contagem regressiva para meu próprio fim.
Hoje, vivo catando os retalhos
daquele passado, como acumuladora, sem espaço para tantos papéis, vestidos,
rabiscos, memórias, tentando me entender, encontrar, reencontrar e viver apesar
de tudo, e promover nessa plantação tosca de sofrimentos uma bela colheita:
lembrar os meus mártires e tudo de bom e de belo que fizeram pelo meu país,
quer na moda, na arte, na política, nos exemplos deixados, na História, através
do maior número de ações produtivas, efetivas e criativas que eu consiga
multiplicar.
E ainda há quem me pergunte em quê a
Ditadura Militar modificou minha vida!
Hildegard Angel
Hildegard Angel
**O primeiro parágrafo original deste
texto, que fazia referência à possível iminente tomada do poder de um governo
eleito democraticamente, na Venezuela, foi trocado pela frase sucinta aqui
vista agora, às 15h06m deste dia 24/02/2014, porque o foco principal do assunto
(a ditadura brasileira) foi desviado nos comentários. Meus ombros já são
pequenos para arcarem com a nossa tragédia. Que dirá com a da Venezuela!
*** Pelo mesmo motivo acima exposto,
os comentários que se referiam à questão na Venezuela referida no antigo
primeiro parágrafo foram retirados pois perderam o sentido no contexto.Pedindo
desculpa aos autores dos textos, muitos deles objeto de reflexão honesta e
profunda, e merecedores de serem conhecidos, mas não há motivação para
mantê-los aqui no ar. O nível de truculência a que levou a discussão não me
permite estimulá-la.
Um comentário:
Adorei a matéria da Scheherazade.. nunca pensei que fosse me interessar por política,mas com uma boa professora qualquer assunto se torna interessante. Parabéns prof!! quando eu for professora eu espero ter essa capacidade de fazer seus alunos interagirem e se interessarem nos assuntos que você aborda em sala.. mesmo nunca tendo passado por nossas cabeças que isso fosse nos interessar.. Bjs Gabriela Domingues :)
Postar um comentário