domingo, 18 de março de 2012

Consumo, logo existo!

23 de setembro de 2007


Escrito por Frei Betto
Ao visitar em agosto a  admirável obra social de Carlinhos Brown, no Candeal, em Salvador,  ouvi-o contar que na infância, vivida ali na pobreza, ele não conheceu a  fome. Havia sempre um pouco de farinha, feijão, frutas e hortaliças.  "Quem trouxe a fome foi a geladeira", disse. O eletrodoméstico impôs à  família a necessidade do supérfluo: refrigerantes, sorvetes etc.

 A economia de mercado, centrada no lucro e não nos direitos da  população, nos submete ao consumo de símbolos. O valor simbólico da  mercadoria figura acima de sua utilidade. Assim, a fome a que se refere  Carlinhos Brown é inelutavelmente insaciável.

 É próprio do humano - e nisso também nos diferenciamos dos animais -  manipular o alimento que ingere. A refeição exige preparo, criatividade,  e a cozinha é laboratório culinário, como a mesa é missa, no sentido  litúrgico.

 A ingestão de alimentos por um gato ou cac horro é um atavismo  desprovido de arte. Entre humanos, comer exige um mínimo de cerimônia:  sentar à mesa coberta pela toalha, usar talheres, apresentar os pratos  com esmero e, sobretudo, desfrutar da companhia de outros comensais.  Trata-se de um ritual que possui rubricas indeléveis. Parece-me desumano  comer de pé ou sozinho, retirando o alimento diretamente da panela.

 Marx já havia se dado conta do peso da geladeira. Nos "Manuscritos  econômicos e filosóficos" (1844), ele constata que "o valor que cada um  possui aos olhos do outro é o valor de seus respectivos bens. Portanto,  em si o homem não tem valor para nós." O capitalismo de tal modo  desumaniza que já não somos apenas consumidores, somos também  consumidos. As mercadorias que me revestem e os bens simbólicos que me  cercam é que determinam meu valor social. Desprovido ou despojado deles,  perco o valor, condenado ao mundo ignaro da pobreza e à cultura da  exclusão.

 Para o povo maori da Nova Zelândia cada coisa, e não apenas as pessoas,  tem alma. Em comunidades tradicionais de África também se encontra essa  interação matéria-espírito. Ora, se dizem a nós que um aborígene cultua  uma árvore ou pedra, um totem ou ave, com certeza faremos um olhar de  desdém. Mas quantos de nós não cultuam o próprio carro, um determinado  vinho guardado na adega, uma jóia?

 Assim como um objeto se associa a seu dono nas comunidades tribais, na  sociedade de consumo o mesmo ocorre sob a sofisticada égide da grife.  Não se compra um vestido, compra-se um Gaultier; não se adquire um  carro, e sim uma Ferrari; não se bebe um vinho, mas um Château Margaux. A  roupa pode ser a mais horrorosa possível, porém se traz a assinatura de  um famoso estilista a gata borralheira transforma-se em cinderela...

 Somos consumidos pelas mercadorias na medida em que essa cultura  neoliberal nos faz acreditar que delas emana  uma energia que nos cobre  como uma bendita unção, a de que pertencemos ao mundo dos eleitos, dos  ricos, do poder. Pois a avassaladora indústria do consumismo imprime aos  objetos uma aura, um espírito, que nos transfigura quando neles  tocamos. E se somos privados desse privilégio, o sentimento de exclusão  causa frustração, depressão, infelicidade.

 Não importa que a pessoa seja imbecil. Revestida de objetos cobiçados, é  alçada ao altar dos incensados pela inveja alheia. Ela se torna também  objeto, confundida com seus apetrechos e tudo mais que carrega nela mas  não é ela: bens, cifrões, cargos etc.

 Comércio deriva de "com mercê", com troca. Hoje as relações de consumo  são desprovidas de troca, impessoais, não mais mediatizadas pelas  pessoas. Outrora, a quitanda, o boteco, a mercearia, criavam vínculos  entre o vendedor e o comprador, e também constituíam o espaço das  relações de vizinhança, como ainda ocorre n a feira.

 Agora o supermercado suprime a presença humana. Lá está a gôndola  abarrotada de produtos sedutoramente embalados. Ali, a frustração da  falta de convívio é compensada pelo consumo supérfluo. "Nada poderia ser  maior que a sedução" - diz Jean Baudrillard - "nem mesmo a ordem que a  destrói." E a sedução ganha seu supremo canal na compra pela internet.  Sem sair da cadeira o consumidor faz chegar à sua casa todos os produtos  que deseja.

 Vou com freqüência a livrarias de shoppings. Ao passar diante das lojas  e contemplar os veneráveis objetos de consumo, vendedores se acercam  indagando se necessito algo. "Não, obrigado. Estou apenas fazendo um  passeio socrático", respondo. Olham-me intrigados. Então explico:  Sócrates era um filósofo grego que viveu séculos antes de Cristo. Também  gostava de passear pelas ruas comerciais de Atenas. E, assediado por  vendedores como vocês, respondia: "Estou apenas observando qu anta coisa  existe de que não preciso para ser feliz."

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